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Isabel, Bela, Bebel: minha mãe

Isabel: pura, casta, aquela que cumpre promessas...

16 de setembro de 2019


Minha mãe cheirava a bolo de fubá, biscoito doce e ‘Alma de Flores’, aquele sabonete barato. Ela adorava aquele sabonete. Minha mãe gostava de coisas assim: simples ao extremo, singelas e que custassem pouco. Ela falava sempre pra não gastarmos dinheiro, que pra ela ‘estava tudo bom’ e que a gente ‘tinha que economizar’.

Há quase um ano, eu publiquei aqui um texto em homenagem ao meu pai, Geraldo Vargas; agora, venho aqui do mesmo modo escrever esse texto para minha mãe Isabel Ferreira Borges.

É que ela também partiu, nos deixou agora em abril: sim, exatamente um ano depois da partida do meu pai.

E a gente agora fica  tentando colar nos fragmentos da memória, esses pedacinhos de lembranças que constroem tudo que aquela pessoa, muito amada, foi. Foi não, é. Pois aquela pessoa muito amada, minha mãe, Isabel, ficou triste demais depois que meu pai foi embora. Nós todos tentamos fazê-la se interessar pelas ‘coisas’, nós todos dizíamos ‘mãe, não fique assim, o pai descansou...’ e ela, para nos agradar, concordava, mas quantas vezes a pegamos chorando escondido ou olhando para o nada?

Inúmeras vezes. Dizem que ela ‘somatizou’, dizem que ela foi ao encontro do ‘eterno namorado’; os médicos disseram que devido à idade (87) ela estava, de fato, ‘cansada’, porque o corpo envelhece, é natural e etc.  e nós acabamos aceitando tudo isso porque o que se há de fazer, não é mesmo?

Assim, minha mãe, a dona Bela, a Bebel, Isabel,  se foi no dia 5 de abril e agora, como escrevi linhas acima, ficamos tentando montar o quebra cabeças, criar um painel de memórias, porque isso é tudo que nós que ficamos podemos fazer.

Pois bem: minha mãe nasceu em Carmo da Mata em 1931, numa família grande e aos doze anos já era a lavadeira oficial das roupas dos irmãos que trabalhavam na roça. Ela não pôde estudar; o pai achava que somente os homens tinham esse direito e assim a ela couberam os serviços domésticos. Como minha mãe sofreu, trabalhando desde criança em serviços pesados, cuidando dos irmãos menores, ela foi a típica representante de uma geração de mulheres pobres do quase sertão brasileiro; mulheres que parecem ter nascido só para sofrer, literalmente.

Aos quase 17, ela conheceu meu pai, se casou, e fico feliz que ao menos tenha se casado com alguém que a amava de verdade, porque muitas mulheres da sua classe social nem isso tiveram. Depois de um tempo no Cedro do Abaeté eles vieram para Dores. Sinto dizer, mas minha mãe não gostava de Dores e nunca se adaptou. Ela viveu sua vida tão dentro de casa, rodeada de filhos e afazeres domésticos incessantes que muitos pensavam que nem tivéssemos mãe. Ela estava sempre na cozinha, no tanque, no quintal, aqui e ali, fazendo ou inventando coisas para ajudar meu pai nas lidas da casa. E também nos obrigava a ajudar e ficava brava se nos visse fazendo coisas prosaicas como ver TV à tarde ou brincar na rua à noite. Ela também era muito religiosa e fazia questão que fôssemos à missa e a todos os eventos católicos.


Meu pai ‘ensinando’ minha mãe a ler, uma cena rotineira.

Sim: como boa adolescente ‘rebelde sem causa’, fiquei brava e briguei por isso e aquilo muitas vezes, mas agora, olhando para trás eu vejo uma mulher tão cansada, extenuada mesmo, com filhos pequenos ao redor, com os filhos mais velhos morando longe, com uma vida difícil, difícil,  enfim. Como não ser brava, como não se apegar a algo, como não ser exatamente como ela foi?

Mas não pensem vocês que ela era assim, ‘brava’ ou ‘nervosa’ com os outros; se meu pai era aquela pessoa que se virava em mil para trabalhar e ajudar quem quer que fosse, era porque minha mãe estava ali, na retaguarda, fazendo o papel da grande mulher que dizem, está ao lado (e não atrás) dos grandes homens. E assim, lá ia a dona Bela nas reuniões vicentinas _ só isso a fazia sair de casa _ fazer biscoito para as crianças das famílias da conferência, levar leite à noite para quem precisasse, fazer um mingau, doar roupas e etc.

Dona Bela: era assim que o povo do Cedro a chamava; para os sobrinhos era a ‘Tia Bela’ e muitos diziam com carinho: a senhora é a tia que mais gosto. E como não gostar, se eram recebidos sempre com sorrisos, café e bolo? Mas isso era para todos que iam lá em casa, sem exceção.

E no meio disso tudo, de crianças ‘encapetadas’; de adolescentes ‘rebeldes sem causa’ e de jovens que iam embora, ela chorava e sofria a cada partida daquele filho e falava dezenas de vezes, ‘tome cuidado’, e fazia isso com todos e cada um dos nove de forma única, especial e inesquecível. E ela, dona Isabel, conseguiu com dificuldade estudar até a 4ª série, no Mobral, mas se atrapalhava com as letras e embora a gente tentasse ajudar, ela logo largava os livros pra lá e ia assistir mais uma missa na TV.

Minha mãe, dona Bela, teve todos os filhos em casa, menos a caçula; recebeu ordens expressas depois do quinto para que não tivesse mais, mas depois dele vieram mais quatro...  Isabel, um nome tão bonito, sempre achei lindo o nome dela e dizia que queria ter uma filha só  para colocar esse nome.

Agora eu vejo minha mãe tão graciosa entre flores, ela e meu pai, eu quero guardar essa imagem, quero esquecer todo o sofrimento que possa ter existido, isso não é nada, nada, diante de todo afeto e grandeza de coração, todo amor, enfim, que ela sempre representou para mim, para todos nós, seus filhos e filhas, seus netos e bisnetos, seus  sobrinhos, irmãos, o povo todo lá da nossa rua...

Minha mãe ‘nervosa’, orgulhosa dos filhos, saudosa até o fim dos seus dias, de seus pais e irmãos; ela falava que queria ter sido freira e ficava mais brava ainda quando eu dizia  (na fase rebelde sem causa) ‘mas, a senhora se casou e teve nove filhos!”; mas tudo isso agora são uns retalhos, são como essas flores singelas que crescem entre pedras e enfeitam tudo...tudo. A braveza dela é nada, é engraçada até, porque minha mãe foi uma pessoa tão simples, de alma tão pura que sua ‘braveza’ era de mentirinha.

Minha mãe, Isabel, Bela, Bebel foi isso: uma flor linda, delicada, mas de beleza enorme e comovente, dessas que nascem entre pedras, dessas que a gente olha e nunca mais esquece. Descanse em paz, mãe.

Esse texto é dedicado para todas as amigas queridas de minha mãe, pessoas que tornaram sua vida mais leve aqui em Dores, são elas: Dirce, dona Neném, Maria Helena, dona Nair e Arinéia, Lúcia, Cidinha, todas as Marias do cerrado e arredores, dona Santinha, Orquiza e dona Lurdes  (in memorian) e toda gente que frequentava nossa casa e levava um pouco de alegria para a dona Bela.


Meus pais: que estejam mesmo juntos em algum lugar pacífico e tranqüilo como esse.

Autora: Ana Claudia Vargas