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Meu Pai Geraldo Vargas

Texto em homenagem a Geraldo Vargas

04 de junho de 2018


Meu pai:  Geraldo  Vargas

Me perdoem, mas é que tive um pai tão ‘pai’  e agora, que ele se foi, só me resta juntar como num álbum de vida, estas singelas lembranças, numa tentativa de preservar a memória dele e de contar um pouco do muito que ele foi.

Meu pai adorava contar histórias: histórias de quando era menino no Morro do Ferro, de quando fazia carros de boi no Cedro do Abaeté, de quando andava de trem e passava por Dores indo para Oliveira, de quando trabalhava com seu pai viajando pelas fazendas, de como se apaixonou por minha mãe, de como foi o dia em que se casaram e de como choveu como nunca naquele dia. Meu pai aos sete anos já trabalhava  ajudando sua mãe a vender doces e teve um dia em que o cavalo no qual estavam se assustou, os doces voaram pelos ares e ele e os irmãos ficaram felizes porque só assim puderam saborear os tais doces. Isso foi há tanto tempo, década de 1920, mas ele se lembrava de tudo e a cada vez que recontava essas tantas histórias, acrescentava um detalhe que dava mais graça ao seu relato. Meu pai era assim: Geraldo Vargas, nascido em Morro do Ferro, distrito de Oliveira, em 1921; um menino que nunca gostou de jogar bola, mas adorava ler; que foi professor na roça mas teve que parar de estudar (para desgosto do padre que dava aulas para ele) para ajudar o pai no trabalho que aparecesse: como pedreiro ou marceneiro, e essa última acabou sendo a profissão que ele seguiu a vida toda, até agora a pouco, aos noventa e tantos anos. Porque ele, meu pai, amava trabalhar, fazer seus embondos como chamava e, ultimamente, lá em Poços de Caldas (onde passou seus últimos anos) vivia na oficina fazendo suas estrelas de madeira, suas casinhas de passarinhos e sim, vivia se machucando, mas não adiantava pedir para que ficasse quieto... Não, ele não queria ficar quieto: queria contar histórias, queria trabalhar com a madeira, queria viver e se sentir ativo. Meu pai era assim.

Meu pai quando morava no Cedro do Abaeté, para onde foi quando se casou, fazia seus saudosos carros de boi, aplicava injeções em quem precisasse, construía caixões para os ‘anjinhos’, desenhava nos panos de prato para que minha mãe e outras mulheres bordassem... Sim, ele já havia passado o dia todo na oficina construindo rodas de carro de boi mas se alguém precisasse de uma injeção, lá ia ele, todo prestativo.

Depois, meu pai veio morar em Dores do Indaiá,  na década de 1960, fez isso para que os filhos pudessem estudar mais. Como contei, meu pai não pôde estudar muito mas  fazia questão que os filhos estudassem, talvez porque, pela dureza de sua rotina, soubesse o quanto estudar era algo importante.  E aqui em Dores, a vida nunca foi fácil para meu pai. Aqui ele chegou, foi trabalhar com suas carpintarias, a família foi aumentando, os filhos mais velhos foram indo pra cidade grande, e meu pai lá, fazendo colchões até de madrugada (como me lembro disso) para vender na Casa Lacerda; e meu pai lá reformando sofás, guarda roupas, mesas, cadeiras e o que mais aparecesse e aparecia de tudo mesmo, coisas inacreditáveis. Eu cresci vendo todo o tipo de gente entrando e saindo da minha casa ali no bairro Juiz de Fora, em busca dos serviços de marcenaria do meu pai. Lá ficava ele na sua velha (e  mais que bagunçada) oficina, envolto por um cheiro de serragem que até hoje gosto de sentir por me lembrar disso tudo; lá ficava ele trabalhando incansavelmente para dar conta de tudo o que aparecia, pois era preciso dar conta porque os filhos eram muitos. Meu pai tinha orgulho de dizer que trabalhou fazendo os bancos da igreja matriz mas eu, de minha parte, tive um orgulho danado foi quando ele construiu os armarinhos que guardavam nossos livros lá no Benjamim Guimarães. Eu nunca esquecerei quando ele passou no corredor ao lado da irmã Filomena e olhou lá para dentro da classe e sorriu para mim (pai que saudade desse dia). Não me lembro quantos anos tinha, se estava na terceira ou na segunda série, mas lembro do meu pai rindo pra mim. Assim era meu pai: trabalhar era algo que o deixava feliz, falante, alegre, vivo e acho que as pessoas percebiam isso porque trabalho não faltava para ele.

Lá no cerrado não tem quem não conheça ou tenha conhecido meu pai, aquele homem magrinho que andava depressa pela rua e que saía o dia inteiro para ir ao mercado, para ir comprar verniz, cola ou pregos; que se tivesse acabado de chegar e percebesse que havia esquecido algo, voltava na mesma hora. Meu pai parecia incansável, tanto que no meio disso tudo, ainda achava tempo para ‘presidir’ uma conferência vicentina que ficava ao lado da nossa casa e que apresentava um ‘desfile’ interminável de dramas humanos com suas famílias maltratadas, suas crianças doentes, velhos abandonados... Quantas vezes vi meu pai deixar o cansaço pra lá  ir lá ‘embaixo’ falar com fulano ou sicrano que era preciso uma casa, uma cesta básica, um serviço, uma aposentadoria para uma mãe solteira ou um velho desamparado. As pessoas batiam lá em casa a qualquer hora do dia ou da noite e meu pai sempre as atendia e quantas vezes também o vi sendo xingado porque não havia casa vazia naquele momento, mas ele permanecia o mesmo, não se enraivecia e continuava tentando...conseguir uma casa, comida, uma vida razoável para gente que não tinha nada...nada. Meu pai era assim: sempre solícito, um esperançoso nato, um forte, a pessoa que todos procuravam quando precisavam de um conselho; um homem simples que adorava livros e não perdia o jornal nacional; uma pessoa que na sua simplicidade absurda desenhava gatos para nós em folhas de embrulhar pão, que apontava nossos lápis, ia nas nossas reuniões escolares, conversava com padres, maridos que batiam nas esposas, pessoas que bebiam além da conta e gostavam de espancar os filhos... Não, não havia nada que assustasse esse meu pai magrinho e sempre disposto a ajudar quem quer que fosse. Ah, meu pai também fazia asas para anjos na época das comemorações de maio (isso lá no Cedro do Abaeté), ele também achava que madeira cabia em qualquer objeto, nossos estojos eram os maiores da classe (que saudade) pois meu pai gostava de fazê-los bem grandes e pesados! E se o fundo da mochila estragasse porque não colocar uma madeirinha? O mesmo valia para sapatos e baldes, por que não? Bendita madeira que servia para tudo! Meu pai era assim: esse meu pai que Deus achou por bem levar, espero que para um bom lugar, no dia 26 de abril. Esse meu pai que adorava música caipira mas também gostava de música moderna e um dia adorou ouvir ‘Billie Jean’ do Michael Jackson porque era bom ‘de ouvido’ e sabia reconhecer música bem feita, independente do estilo. Esse meu pai que muitos chamavam ‘guerreiro’, ‘heroi’ porque por mais que tudo estivesse difícil, ele sempre achava um jeito de fazer o certo, o que seria bom não só para ele mas para todos;  esse meu pai que toda tarde pegava seus livros (ele lia vários ao mesmo tempo) e se sentava na varanda, olhando o horizonte cheio de reflexões como se fosse ainda fosse um eterno menino espantado diante do mundo. É, acho que meu pai foi sempre  isso mesmo: um menino de alma simples e alegre, aquele menino que gostava de andar a cavalo, que sentia saudades da avó, que gostava de angu com leite, rapadura, e não dispensava uma dose de vinho durante o almoço. Esse meu pai que Deus levou e agora faz tanta, mas tanta falta, que é quase impossível escrever isso sem chorar... Porque o meu pai, Geraldo Vargas, se despedia da gente ao telefone dizendo assim ‘um abraço e um beijo  desse pai que não esquece’ e agora ficamos todos nós órfãos de um pai que foi em toda a sua vida, um exemplo, uma luz, uma pessoa que a gente achava que estaria sempre ali...Ora, é claro que a gente sabe que a morte chegará para todos, mas pai, como está sendo difícil aceitar que você se foi, simplesmente, se foi...agora só me resta pedir a Deus que cuide bem do senhor e que permita que senhor possa construir, eternamente, suas estrelas de madeira. Um abraço e um beijo dessa filha que nunca o esquecerá.

Meu pai e minha mãe, Isabel, iriam celebrar quase 70 anos de casados neste mês de maio. Juntos eles tiveram 11 filhos: Lucimar e Maria Aparecida (já falecidos), Conceição, Eustáquio, Lasara, Ana Maria, Fábio, Marcelo, Adriane, Danielli e esta que escreveu.

                                                                                                                

Meu pai com seu inseparável livrinho.

Meu pai com seu inseparável livrinho...

Meu pai orgulhoso do seu trabalho recente: estrelas e casinhas de passarinhos.

 

                                                                                                                      Autoria: Ana Claudia Vargas